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ENTREVISTA COM MARCOS BONISSON
Author: Leandro Pimentel (ECO-UFRJ)

Marcos Bonisson vive atualmente na cidade do Rio de Janeiro. Desde 1978 trabalha com fotografia, Super-8 e vídeo. Estudou gravura, desenho e fotografia na Escola de Artes Visuais do Parque Lage no final da década de setenta. É formado em Letras, pós-graduado em Arte e Cultura e atualmente faz Mestrado em Estudos Contemporâneos das Artes, na Universidade Federal Fluminense, onde realiza uma pesquisa sobre a linguagem interdisciplinar de Hélio Oiticica em seu período de Nova York (1970-1978) com orientação de Tânia Rivera.

 

Desde 2001 ministra cursos de artes visuais, com ênfase no uso da fotografia por artistas contemporâneos. Em 2011 publicou o livro Arpoador, com diferentes séries de fotografias e estudos (desenhos, colagens e maquetes) tendo em comum a praia do Arpoador como espaço de invenção. Tem o seu trabalho no acervo de significativas coleções de arte, como as do Museu de Arte Moderna do Rio, da Maison Européene de la Photographie e da Fondation Cartier Pour l’Art Contemporain, entre outras. Ganhou a Bolsa RioArte 2000 com o projeto em vídeo Héliophonia, que abordava o trabalho Quasi-cinema de Hélio Oiticica. Em 2006, participou da 27a Bienal Internacional de São Paulo. No Rio de Janeiro tem o seu trabalho representado pela Galeria Arthur Fidalgo.

Atualmente prepara uma exposição da série Polagens, programada para 2013 no MAM do Rio de Janeiro. A série consiste em objetos únicos feitos a partir de colagens com Polaroids compostas de tiras e tramas.

Leandro Pimentel: A tua primeira formação foi no Parque Lage, aonde você experimentou vários suportes. Como é que você chegou até a fotografia?

Marcos Bonisson: Eu não fui para a escola de artes visuais pensando em estudar fotografia. Fui, na verdade, experimentar uma série de coisas. O Parque Lage nessa época, 77, 78, estava sob a direção do Rubens Gerchman. Já estava cansado da escola, tinha terminado o terceiro ano colegial na época e fiz vestibular para psicologia. Tinha 18 anos e o Parque Lage se tornou uma espécie de segunda casa para mim. Após fazer cursos de cerâmica, desenho vivo e gravura em metal, descobri a fotografia através da Constance Brenner, fotógrafa americana que ofereceu um workshop no Parque Lage. E isso foi uma coisa interessante porque fazer o curso da Constance foi uma epifania. Mas, aí tenho que retroceder um pouco. Junto com essa turma de bons artistas e professores, o Gerchman equipou a biblioteca do Parque Lage com assinatura de revistas internacionais, principalmente revistas novaiorquinas: Art News, Art in America, Flash Art e a Art Foreign. Como eu tinha domínio da língua inglesa, passava muito tempo ali, mergulhado naquilo, e através das revistas tomei contato com o trabalho do Robert Smithson, Joseph Beuys, do Gordon Matta-Clark, Vito Acconci, Bruce Nauman, etc. Eu lia muitas coisas, principalmente na Flash Art. Essa turma de artista era muito importante até o final dos anos 70, depois caem numa espécie de ostracismo na década de 80, e voltam a partir dos anos 90, com muita força, digamos assim, o solo fértil da arte que nós entendemos por arte contemporânea. Outro achado importantíssimo foi um livro da Aracy Amaral chamado Projeto Construtivo Brasileiro na arte (1950-1962), que simplesmente pirou a minha cabeça porque lá tinha trabalho de gente extraordinária. Esse livro é muito bom. Lá encontrei o trabalho do Hélio Oiticica e então realmente aconteceu um desvio. Obviamente eu já tinha ouvido falar de Hélio porque ele já tinha voltado para o Brasil em 78, mas aí eu comecei a procurar tudo o que havia do Hélio na biblioteca. Quando a Constance Benner chegou ao Parque Lage, acho que eu estava bem preparado no campo experimental, em termos de conhecimento da linguagem das artes.

LP: Qual o ano em que a Costance Brenner ministrou esse workshop no Parque Lage?

MB: Isso era 79... 80 no máximo. Em relação à foto, o que premonitoriamente percebi nesse período entre a biblioteca do Parque Lage e as práticas nas oficinas, é que eu podia sintetizar condensar, diferentes interesses em múltiplos suportes, ou seja, cinema, texto, desenho e pintura num suporte como a fotografia. Eu acho que a minha relação com a foto se deve, em parte, à capacidade que ela tem, que muitos outros suportes não tem. A foto é um meio híbrido, ela consegue ser multisígnica, consegue condensar outros suportes e dialogar muito bem com outros meios. Isso não era uma coisa tão textualizada na época como é hoje. A partir da década de 90, principalmente a partir da segunda metade da década de 80, essa questão da foto começou a ser amplamente contextualizada. Acho que essa foi a minha paixão inicial: a percepção de poder trabalhar com um meio que, de fato, eu estaria trabalhando com vários meios, eu poderia trabalhar o suporte da foto com imagem, texto, não necessariamente com o texto inserido, mas o texto como um conceito aglutinado a isso e, principalmente, filme, música, artes plásticas, coisas que me interessavam naquela época.

LP: Você faz tanto trabalhos com fotografias como também com vídeo. Atualmente, a própria câmera fotográfica digital se torna híbrida. Você tem a opção de fotografar ou de filmar. O Philippe Dubois comenta que essa divisão entre imagem fixa e imagem em movimento perdurou durante todo o século passado e hoje percebe-se que essa separação não é tão simples como parecia. Como você vê essa diferença entre imagem fixa e móvel e, pessoalmente, qual é o teu critério para optar pelo vídeo ou pela fotografia na produção de um trabalho? Como é a tua escolha?

MB: Acho que são suportes distintos. Você pode até hibridizá-los, claro. penso que você pode perfeitamente ver o estático no filme e ver o filme no estático, ter o movimento cinemático no estático. Mas quando comecei a trabalhar com Super-8 no final da década de 70, eu não via muito assim. Eu achava que eram experiências bastante distintas e gostava dessa ideia de ter à mão experiências distintas. Eu não via sentido de contextualizar certas informações que dizem respeito à ação cinemática numa imagem estática. Da mesma forma que eu já gostava de pensar o sentido da imagem estática num fluxo cinemático. Mas eu era um moleque, tinha 18, 19 anos, quando comecei a filmar em Super-8. Então eu gostava daquela coisa do rolinho de cinquenta pés (3 minutos). Gostava da magia de encaixar o rolo na câmera. Tinha um negócio de gerar aquele barulho do cinema, de apontar e não estar tão ligado naquela normatização toda, de campo e contra campo... plongé, contra-plongé... Não estava nem aí para isso. Sabia disso, já tinha lido, mas não me interessava... Gostava de correr com a máquina!

LP: Uma Super-8 te dá uma grande liberdade, não é?

MB: Ela te deixa solto. É uma liberdade. O que eu gostava era de registrar as coisas e ainda de certa forma, penso assim. É um projeto que eu ainda vou retomar. Mais precisamente, voltar aos meus arquivos de Super-8, o que eu estava produzindo na época, naquele momento, era uma espécie de diário. Um jornal de variedades. Ideias que poderiam ser utilizadas no tempo do devir. Não era necessariamente para aquele momento. Até porque eu não tinha moviola e não estava muito interessado na montagem dos Super 8´s.

LP: Era um bloco de notas, você não queria perder aquilo...

MB: O que eu via ali era a possibilidade de que, eventualmente, essas imagens, digamos assim, que esse arquivo imagético em movimento, pudesse dar caldo para uma alquimia no futuro. Então eu não via muito assim dessa forma fundida. Hoje eu vejo assim. Quer dizer, hoje posso dialogar com isso dessa forma, mas também posso expandir para outras coisas. Mas na época eu achava que a onda de pegar a Super-8 era um negócio bem diferente de fazer foto. Depois eu tive câmeras de VHS, Vídeo-8, High 8 e hoje em dia tenho uma Canon G12, entre outras, que faz filme em HD. Então essa relação com a imagem em movimento sempre esteve muito presente, muito do meu lado, até por uma relação de paixão. Acho que toda essa prática de assistir filmes diferentes, distinguir várias categorias e anti-categorias que acabam se tornando categorias... O cinema expositivo, cinema isso, cinema aquilo, acho que alguns artistas já estavam experimentando nessa direção e que é um caminho eventualmente inevitável, para o artista que quer trabalhar com filme, não esse diretor de cinema convencional e tal, mas o artista, Hélio Oiticica e o seu quase-cinema, Gordon Matta-Clark, Peter Greenaway ou Robert Frank, enfim, caras que pensam a imagem de uma forma que eu admiro muito, em sentido expandido, espacial, participativo, sensorial, etc. Artistas que estão ou estavam produzindo coisas fabulosas, sem a restrição do cinema tradicional, esse cinema convencionado a ser essa coisa, essa sala de projeção, duas horas, linear, literáriso, enfim, o som muito bom e narrativa impecável. Isso hoje já foi implodido, explodido, as narrativas são várias e a capacidade de você poder trabalhar a imagem experimental em movimento é fabulosa, o que interessa é a potência da linguagem. Hoje a molecada já faz isso. A tecnologia foi muito bacana nesse sentido de promover uma facilidade que amplia não somente o aspecto sintático, mas principalmente, o aspecto semântico. Invenção de sentidos. Então o moleque num iPhone desses tá lá fazendo filmes. Coisas inimagináveis na minha época, por exemplo.

LP: Você chegou a ter contato pessoalmente com o Hélio Oiticica. Na 27 Bienal de São Paulo você apresentou o curta Héliophonia e atualmente a tua pesquisa de mestrado é sobre Hélio Oiticica. Gostaria de saber qual foi a influência do Hélio no teu trabalho, sobretudo nessa relação espacial do corpo e da imagem. Observo que em muitas das tuas imagens há uma ênfase na dimensão tátil da matéria. Em geral você investe na definição, na visibilidade da textura, a fim de apresentar esses detalhes e convidar o espectador a penetrar na imagem. Podemos sentir o objeto. A diferença que percebo é que o Hélio solicita o corpo real do espectador, enquanto você investe no corpo virtual, ativado através do olhar.

MB: O Hélio voltou de Nova Iorque em 1978. Eu o conheci em 1979, apresentado pelo poeta Jorge Salomão. E aí me convidaram para fazer parte dessa grupo de artistas que iria integrar os dois últimos projetos de participação coletiva que o Hélio organizou em vida. O primeiro se chamou Kleemania, que foi no bairro do Cajú em dezembro de 79, uma homenagem que Hélio fez a Paul Klee, que faria 100 anos. Cada artista fez o seu trabalho, inventou um negócio, e eu era um deles. O outro evento foi em janeiro de 1980, Esquenta pro Carnaval, que tinha o título em inglês de Warm Up Mangueira, no morro da Mangueira. Em março de 1980 o Hélio faleceu. Bom, a partir desse breve conhecimento do Hélio eu já fiquei fascinado, porque ele era especial. Eu me lembro bem da voz do Hélio. Sempre me impressionei com a voz do Hélio, era uma fala-performance, ele falava cheio de interjeições, de forma polifônica, você ficava impressionado. Como uma pessoa poderia ter timbres tão variados em apenas uma oração? No Cajú, eu me lembro que fui com o Jorge Salomão e o Hélio chegou depois. Eu falei "esse cara não existe". Sua indumentária era assim: uma sunga preta, uma camiseta dos Stones, se não me engano, que deixava a barriga dele meio de fora, mas assim, no limiar, quer dizer, tudo preciso. As pernas fininhas e lá embaixo um par de meias de cor preta e um mocassim preto. Já tinha visto gente louca, estranha, mas eu pensei: "esse cara realmente é um alienígena, de onde surgiu isso?"

LP: E ele fazia uma performance?

MB: A performance do Hélio no Cajú foi realizar o Contrabólide “devolver a terra à terra. Inclusive essas cenas que aparecem no Cajú no documentário longa metragem sobre ele feito pelo Césinha Oiticica, que foi lançado nessa última edição do Festival de Cinema do Rio, são do meu Super-8. Fiz dois filmes sobre o Hélio: H.O.N.Y em parceria com o poeta Tavinho Paes na década de 80 e depois, o Héliophonia em 2001 com a Bolsa da Rio Arte. A escolha do Cajú não foi assim, aleatória. O Hélio andava naquela região, que é extraordinária, diga-se de passagem. Tem muito a ver com o começo do Rio de Janeiro, uma espécie de depositário. Tem lá o cemitério dos escravos, tem muita coisa estranha. É um lugar esquisito. Meio isolado no tempo. Só o Hélio Oiticica para escolher passear no Cajú. Ele escolheu como local de encontro a praça Colônia Z-5. Depois fomos para uma fábrica abandonada e depois para um lixão.

LP: Isso foi tudo organizado por ele?

MB: É claro, organizado por ele. Organização Hélio Oiticica. Aí, bom, fomos para essa parte do lixão, que era um aterro. Mas não era lixo orgânico, era uma parte de dejetos secos, entulho. Não tinha lixo orgânico. Tinha uma cadeira lá, achei uma capa branca, sentei na cadeira e alguém filmou com a minha Super-8. O Héliophonia tem até um fragmento de alguns segundos dessa minha breve performance. E cada artista fez a sua intervenção. Depois veio o morro da Mangueira, onde eu levei uns papeis coloridos, celofanes. Você vê como é que são as coisas... Eu levei uma máquina, não levei a Super-8 dessa vez, levei uma máquina fotográfica com slides e a minha ideia era dar papeis celofanes para as pessoas, elas faziam um gesto e eu registrava esse gesto colorido. E eu não fiz uma foto do Hélio, isso é incrível. Claro, eu sabia que o Hélio estava ali, adorava o Hélio, mas não tinha essa ideia do documento, e nem sabia que ele iria morrer três meses depois. Não tinha essa visão documental do mundo.

LP: Mas nessa época você esteve inserido no mesmo movimento que o Hélio, convivendo com o mesmo grupo?

MB: Não, quando conheci o Hélio eu tinha 20 anos. Eu acho que essa experiência em relação ao trabalho de certos artistas, para alguns artistas como eu, ela não se define verbalmente, ela é indizível e só pode ser traduzida, talvez, com o tempo. Não se dá simplesmente assim, porque fiz isso ou aquilo. É um diálogo continuo. Quer dizer, eu tenho um foco de interesse nesse período novaiorquino do Hélio. Ali acho que ele troca de pele em vivências e linguagens. Há um desvio radical devido às circunstâncias. Não só porque o Hélio sabia que o tempo de permanência dele na cidade de Nova Iorque era impreciso, ele tinha certeza de “Experimentar o Experimental” como ele mesmo afirmou em um de seus textos do período. A produção de Hélio em Nova York foi intensa, só a literatura epistolar do artista é imensurável. Há também uma questão de espaço exíguo para organizar a sua produção. O Loft 4 e a Christopher Street não tinham o espaço casa da Rua Alfredo Duarte no Rio. Por isso, também sua concentração nos meios da escrita, maquetes, filmes, fotos, quase-cinema que estariam inseridas no que Hélio intitulava de Newyorkaises e depois Conglomerado, um projeto de “Livro” dessa vasta produção que o artista não teve tempo de terminar.

LP: E a tua experiência em Nova Iorque, Como foi sair de um ambiente artístico experimental e ir para uma cidade onde você não tinha referências?

MB: Em Nova Iorque tive vários trabalhos. Dirigi táxi e outros serviços diferentes. Eu me casei logo e passei seis anos casado com essa mulher. Uma dançarina-coreógrafa, uma artista fabulosa e acho que a razão de permanecer na cidade foi, inicialmente, por causa dela. Depois por tudo que eu podia ver, ler e experimentar. Aí tive vários trabalhos até que comecei a trabalhar principalmente em laboratórios. Trabalhei no New York Film Works, por exemplo, que era o único laboratório além de Rochester, no Estado de Nova Iorque, que revelava filmes Kodachromes.

LP: Então você trabalhou como laboratorista fazendo o processo Kodachrome?

MB: Eu não revelava o Kodachrome. Trabalhei fazendo outras coisas, principalmente ampliações em cores, e depois fui ser chefe desse departamento. Tornei-me especialista na duplicação de cromos. Um processo complicadíssimo, muito técnico. Eu duplicava slides 35mm em cromos 4x5 e 8x10. Aí foi todo um exercício de conhecimento de cor porque toda vez que você usa um filme há mudanças. Tinha que controlar e chegar o mais perto possível do original. Tornei-me muito bom nisso e mais tarde fui trabalhar no escritório da agência Magnum em Nova Iorque.

LP: Como foi essa sua passagem da vanguarda artística para o trabalho com a fotografia documental com a qual você passou a ter contato na Magnum?

MB: Na verdade eu não estava muito interessado na fotografia. Nova Iorque foi uma experiência muito carnal, visceral. A arte era a linguagem. Acho que a linguagem é um termo mais apropriado, digamos assim, conectado, porque o que eu tive em Nova Iorque foi uma vivência tão intensa, com tantas coisas. Foi um período muito rico. Eu tinha 22 anos... E de repente eu me transformei em um rato de museu. Vivia no Whitney Museum, no MoMA, sabia onde estavam todas as obras. A última vez que estive no MoMA foi após a reforma, em 2006. Não ia à Nova Iorque fazia tempo, uns 3 ou 4 anos. Quando eu cheguei tudo estava mudado. Tinha fotografias e vídeos da Marina Abramovic e uma série de fotografias de uma performance de Rudolf Schwarzkogler (1940-1962), ligado ao grupo Actionista de Viena. O MoMA não se interessava por essas coisas, só por arte moderna. A parte das vanguardas históricas, a parte construtivista e a parte suprematista. Eu sabia onde estava tudo, a localidade das obras. Desde então, tudo mudou de lugar. Eu me transformei em Nova Iorque, e aquilo ali passou a ter um sentido muito de uma experiência de absorção de informação e de experimentar aquilo com as vivências que eu estava tendo, e a fotografia não era tão importante para mim. Ela volta no final dos anos 80. É importante entender que o fluxo de informação até os anos 90 não era tão rápido como hoje. As coisas tinham outro tempo, era um mundo analógico, não um mundo digital. A informação transitava bem mais devagar.

LP: E como esse contato com as galerias e os museus de arte influenciou você? Em que isso contribuiu para o teu trabalho e até que ponto você acha que isso pode ter dado um peso maior na tua produção. Até mesmo um bloqueio em relação à espontaneidade da tua prática artística do período de experimentação do Parque Lage. Qual é esse equilíbrio?

MB: Nenhum bloqueio. Só expansão. Eu acho assim, por exemplo, que na arte brasileira o que mais me influenciou foi o Neoconcretismo. Quer dizer, aquilo que foi produzido na época do Neoconcretismo. Não só o Hélio, mas Lygia Clark, aquela turma genial. Aquilo que estava sendo produzido em linguagem. Você tinha uma geometria abstrata, um projeto construtivo, ligado ao projeto construtivo internacional, mas com proposições orgânicas. Enfim, seminais. Isso foi o que mais me influenciou e continua influenciando. Eu acho isso ainda extraordinário. Não existe bloqueio. Se você está criando bloqueio é porque você tem questões, buscar novos caminhos. É claro, eu era muito jovem quando tomei contato com essa vanguarda, não sei se posso chamar de vanguarda, mas essas experiências fabulosas dos artistas dos anos 60 e dos anos 70. Inicialmente no Parque Lage, por revistas e periódicos e depois nos anos 80, quando eu estava lá, vendo isso ao vivo.

LP: O que você acha desse movimento dos artistas buscarem o estudo acadêmico? Parece que atualmente há uma necessidade de saber falar do seu próprio trabalho. Antes alguns artistas tinham essa tendência enquanto outros não. Hoje, os artistas mais jovens estão buscando uma pesquisa mais orientada sobre o próprio trabalho, ou sobre o trabalho de outros. O que é que você acha desse artista no ambiente acadêmico?

MB: Olha, eu sou crítico em relação a isso, mas eu vejo esse fato como uma serpente de múltiplas cabeças. E algumas delas são fascinantes, quer dizer, você tomar a universidade como um polo de produção de conhecimento das artes aponta para um tempo de liberdade e prosperidade. Hoje em dia, a pós-graduação da EBA, da UERJ, da ECO, da UFF, no Rio não são as mesmas pós-graduações ou graduações que você tinha na EBA no meu tempo de Parque Lage, que era o último lugar que você queria ir na tua vida. Quer dizer, qualquer pessoa sensata que queria ter uma informação atual, experimental não ia se meter a estudar na EBA. Mas enfim, isso no final dos anos 70. Hoje é diferente. Existe uma produção de conhecimento e de pensamento extraordinária e eu acho muito rico e interessante essa possibilidade. Agora, eu acho completamente patético a intenção de um artista tentar legitimar o seu trabalho com um título acadêmico. Acho também complicado um artista que mal quebrou a casca do ovo, começar a falar do seu próprio trabalho aos 25, 26 anos em trabalhos acadêmicos. Sou crítico disso. Precisa-se de uma vivência maior. Se bobear, daqui a pouco, aos 35, você faz uma retrospectiva e algum curador mané vai dizer que o "corpo da obra de fulano"... Fulano não tem nem uma unha, que dirá um corpo da obra. Então, isso aí deve ser observado com um pouco mais de rigor. Eu não estou falando do artista pesquisador, que trabalha com disciplina, levanta questões e reflete e pensa criticamente O problema é o artista preguiçoso que usa a pós-graduação como um escudo para se proteger de sua falta de trabalho e talento. Eu penso que cabe à banca, aos professores e doutores que aprovam e selecionam no campo das linguagens das artes ficarem mais atentos em relação a esse aspecto. Esse jovem artista que não fez ainda nada e já começou a escrever uma dissertação de mestrado, ou tese de doutorado sobre o próprio trabalho. Isso é complicado, gera muita porcaria com pinta de coisa conceitual mal formulada. Agora, qual é o modelo basicamente adotado? O CNPq e o Prouni estão produzindo mão-de-obra para o mundo da arte. Isso é fato. Quer dizer, existe aí uma relação muito funcional, inclusive ruim, de estabelecer um sentido de função nas pós-graduações em arte. Essa razão funcional e teleológica nas artes deve ser refletida criticamente.

LP: Por sentido funcional você se refere à formação de professores, curadores, críticos etc?

MB: De professores, de curadores, disso e daquilo, mantenedores de um sistema. Eu acho que esse modelo estrutural deve ter uma razão, mas qual é essa razão? Talvez, seja o preço que você paga pela verba do CNPQ, do ProUNI, Capes, etc. Enfim, essas verbas que produzem e fazem com que as pós-graduações das universidades federais e estaduais continuem a existir. Então é um diálogo complexo, não é fácil não, mas certamente existe uma direção que eu vejo, não sei, também não estou tão a par, mas pelo que eu sei, é quase como um diretório político-partidário, eu diria, que vem lá de cima, hierarquicamente determinando razões. Toda função em arte deve ser observada com crítica. Ao mesmo tempo sou fascinado com a produção de informação e de conhecimento atualmente no campo das artes, nas pós-graduações. Pego a revista Arte & Ensaios (EBA), Poiésis (UFF) ou a Conccinitas (UERJ) e vejo pesquisas incríveis ali. Mestrandos e doutorandos publicando coisas muito bacanas.

LP: Por falar em função na arte, vi uma palestra do Vito Acconci, quando ele esteve aqui no Brasil, e achei curioso que aquele artista contundente esteja agora trabalhando em um grande escritório de arquitetura e fazendo megaprojetos.

MB: Mas ele não trabalha só com megaprojetos. Visitei seu ateliê em 2002 e fiz lá a entrevista para o filme Heliophonia. Acconci foi extremamente gentil, inclusive, nessa época, ele estava trabalhando num dos projetos para as novas torres do World Trade Center. Ele falou um negócio interessantíssimo que está no meu filme, disse que ficou encantado com os Ninhos que o Hélio instalou no MoMA na exposição INFORMATION (1970), ele também participou dessa histórica exposição e que o trabalho dele hoje tem muito a ver com arquitetura e espaços ambientais. É claro que todo mundo queria ver aquele Vito Acconci fazendo performances, batendo punheta embaixo da rampa ou fazendo aquelas coisas que ele fazia no final dos anos 60. Acconci vem da literatura, ele era poeta. Ele entra nas artes plásticas pelo viés da literatura, não veio das artes plásticas diretamente. Certamente, todo mundo queria ver isso porque é a informação que você tem, mas o cara está fazendo outras coisas e eu achei fascinante aquilo tudo que ele mostrou. Certamente, um grande artista.

LP: Fala mais do teu trabalho. Para produzir as séries que aparecem no livro Arpoador você parece ter adotado a praia como ateliê.

MB: O Arpoador foi adotado como ateliê, um belo ateliê, diga-se de passagem, nesse bloco de trabalhos especifico. Quer dizer, a série do Arpoador é só um segmento do meu trabalho, foi iniciado em 1997 e o livro só foi publicado em 2011. Embora, eu tenha um grande afeto por esse bloco de trabalho, ele não é único. Tenho muito carinho e orgulho do livro Arpoador. Penso que é um livro bonito e potente. E teve muita gente, incluindo artistas que eu respeito muito, como (Artur) Barrio, por exemplo, que fizeram elogios rasgados ao livro. Aquele livro foi feito todo de forma independente. Sem um centavo de lei de incentivo. Enquanto eu corri atrás de leis de incentivo não deu nada certo. Depois que eu deixei de correr atrás e disse, não, eu vou fazer que nem uma rifa. Pensei, vou rifar quinze trabalhos meus e isso vai pagar o designer e a (gráfica) Burti, porque tinha que ser na Burti. Tem muita coisa em P&B e a Burti faz o melhor P&B. Levantei o dinheiro em dois meses. Isso foi genial. Quero dizer, eu nem conhecia esse negócio de crowdfunding. Essa é apenas uma forma de trabalhar independente. Agora, se você quer apoio de um edital, deve correr atrás com afinco, não ficar esperando. Eu sempre gostei de fazer as coisas de forma independente, são as que mais deram certo na minha vida. Quando eu consigo por mim mesmo, sem esse tipo de ajuda pública, leis...

LP: No livro Arpoador me chamou a atenção uma fotografia colorida de uma Kombi em chamas. Parece que aquela foto foi feita pouco antes de você fechar o livro? Porque você quis que ela entrasse?

MB: É, aquela foto na verdade é um estudo, Estudo de Percurso. Muita coisa ali foi feita um pouco antes de fechar o livro. Acha que eu ia perder a oportunidade? O livro foi publicado em 2011 e algumas imagens foram realizadas em 2011 mesmo, fotos inclusive. Aquele Nu Submerso, por exemplo, foi feito em 2011. Há algumas coisas assim. Eu fui mexendo no livro até o final. Coisas que eu tinha como certas, que estariam no livro, de repente, dançaram. A única coisa que não podia mudar, quer dizer, que eu tinha certeza é que seriam dois blocos. As fotos em preto e branco ficaram de um lado e os estudos do outro e, depois que eu descobri isso, produziu-se um laço espetacular e o livro criou fluxo, um bloco libertou o outro e desdobrou os sentidos em qualquer parte que você abre o livro. E aquela foto da kombi é uma imagem-estudo. Os meus estudos não são convencionais. Eles necessariamente não dão em alguma coisa e muitas vezes se tornam outras coisas que originalmente não tem nada a ver com a intenção do estudo. Eles são livres, fragmentados. Muitas vezes vão dar em outros estudos. Meus estudos têm uma relação objetiva, mas também têm uma relação subjetiva com os trabalhos finais. Outros estudos são simplesmente estudos. Eu gosto da ideia do estudo. Ele é talvez um sintoma do meu trabalho, que não é terminar. Ele sempre deixa aberto. Sempre pode ser mexido. Eu trabalho muito com séries e a ideia de revisitar séries é uma coisa que faço desde moleque. Esse aspecto de deixar em aberto os trabalhos sempre me acompanhou.

LP: Pode-se dizer que uma das tuas principais práticas como artista consiste em trabalhar com os seus próprios arquivos?

MB: Com arquivos também, mas todo esse processo é não-linear, experimental. A ideia é que as coisas não são necessariamente datadas no tempo e lá ficam. A série Pedras de Toque, por exemplo, eu ando me coçando para voltar a trabalhar com ela, mas aí, tem um tempo para voltar e mexer na série. As Pedras de Toque nasceram dessas caminhadas no Arpoador, de pedras deslocadas do calçamento, pedras portuguesas, que eu coleciono. Eu tenho uma gaveta de pedras portuguesas colecionadas. Eu nunca arranco as pedras portuguesas da calçada, mas se elas estão deslocadas, eu pego. Nesse sentido, eu as escolho! Isso é uma coisa interessante porque eu as levo de volta para o Arpoador e invento essas estruturas à beira mar que inicialmente se chamavam Quase-Abrigo. São como construções neolíticas, meio Stonehenge, meio escultórica. Então, fotografava essas construções ao nível da areia molhada com a minha Rolleiflex. Enfim, a linguagem é uma onda sem fim. Acabou que uma imagem da série Pedras de Toque se tornou a capa do livro Arpoador.

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