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A MEMÓRIA COMO GESTO: BENJAMIN, FREUD E A TRAMA DE POLAROIDES DE MARCOS BONISSON
Author: Tania Rivera - Revista Poiésis (UFF 2014)

A memória não tem nada a ver com o arquivo. Seu funcionamento é menos o do armazenamento que o do relâmpago, da centelha luminosa. “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz”, diz Benjamin em um trecho famoso. “O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido” (BENJAMIN, 1994/1940, p. 224), precisa o filósofo, encantado pela “memória involuntária” pela qual Marcel Proust, ao provar uma madeleine, reencontra vivamente sua infância, para logo perdê-la novamente.

Não é apenas redutor conceber a memória como conjunto organizado de registros perceptivos e cognitivos a partir de fatos e objetos, pronto para que dele se disponha em um momento posterior – podemos dizer que essa concepção é francamente ilusória, e talvez mesmo errônea. Ela só corresponde a uma parcela ínfima de nossa experiência, aquela do memento ou dos truques utilizados por estudantes para se lembrar de fórmulas no momento de exames acadêmicos. Nossa experiência cotidiana de falha e remanejamento de elementos na recordação deveria bastar para denunciar a complexidade da memória em sua relação com a linguagem, a narração e a ficção.

A “memória involuntária” de Marcel Proust já demonstrava a falácia de um Eu capaz de controlar a memória de modo a fazer dela um arquivo bem organizado à disposição do arquivista. O gosto da célebre madeleine misturada ao chá trazia de volta a Marcel não apenas dados, mas um amálgama de sensações e representações que o fizeram reviver o passado por um curto instante. Nesse episódio, que faz da memória uma experiência vivida, é importante destacar, en passant, que o escritor aponta não só o caráter vívido e fugidio da memória, mas também uma prevalência do objeto sobre o sujeito. O passado subtraído à inteligência “está fora de seu poder e de seu alcance, em qualquer objeto material (ou na sensação que nos provoca tal objeto) que ignoramos qual seja”. (PROUST citado por BENJAMIM, 2000/1940, p. 39) Não sou eu, o arquivista, quem se lembra: são determinados objetos que rememoram, alojando – em mim, porém fora de mim, no mundo – algum passado.

A noção de memória involuntária não me satisfaz inteiramente, porém, pois ela se coloca ao lado da “memória voluntária” como complemento e contraponto bem delimitado, como se entre elas não houvesse mistura, indefinição ou acavalamento. Ora, parece-me que Benjamin busca justamente um ponto de encontro entre ambas. Em Sobre alguns temas de Baudelaire, ele dá pistas disso, ao falar de uma conjunção, no seio da memória, entre “conteúdos do passado individual” e “elementos do passado coletivo”. (Benjamin, 2000/1940, p. 40) A articulação entre ambos seria realizada pelo narrador, que não informa apenas de modo a comunicar um acontecido, mas o incorpora em sua vida de modo a fazer dele uma verdadeira transmissão da experiência. Nos cultos, com suas cerimônias e festas, tal fusão também se renovaria, e a memória voluntária e a involuntária cessariam então, segundo o filósofo, de se excluírem mutuamente. É, portanto, na transmissão e no compartilhamento com o outro, em situações culturalmente delimitadas e relacionadas a um passado coletivo, que os dois tipos de memória poderiam conjugar-se. Neste ensaio, quero explorar tal intercessão entre memória voluntária e involuntária como algo que poderíamos chamar de memória viva.

Repetir e recordar

Na memória viva algo se repete – como para Proust com sua madeleine. Mas a memória não se confunde com a alucinação, ela não chega a tornar totalmente presente o passado. Ela tampouco se deixa classificar imediatamente como “repetição” ou “elaboração”, segundo os termos usados por Freud em seu famoso texto Recordar, repetir e elaborar. (FREUD, 1986/1914) A memória, como sabemos, é uma questão central para o psicanalista e ela é sempre problemática – nela se trata não apenas daquilo de que nos lembramos, mas fundamentalmente daquilo de que não podemos nos recordar. Aquilo que resiste a ser lembrado não deixa de estar presente, subtraído à consciência, recalcado, e pode estar na origem de sintomas diversos, sob uma outra modalidade de memória: como ato que se repete.

O trauma nomeia justamente isso que marca uma vida e que se repete incessantemente, em vez de ser lembrado. Da repetição imemorial desse passado se poderia, segundo Freud, engatar um trabalho de memória capaz de elaborá-lo, ou seja, revivê-lo em palavras e transformá-lo, através de uma narração que o retome repetidamente e o desdobre em diferentes versões e pontos de vista. Longe de consistir em uma habilidade neurológica ou cognitiva, a memória é, assim, um verdadeiro trabalho – uma atividade pela qual o sujeito se apropria dos eventos aos quais está submetido, para deles fazer sua história. A prática psicanalítica baseia-se justamente nisso: tornar palavra o que insiste em repetir-se em ato. E para que isso se dê é necessária a presença de um outro – o psicanalista. Não me parece se tratar portanto, na concepção freudiana da memória, de uma separação estrita que permitiria uma caracterização excludente entre repetição (vida) e elaboração (memória), mas sim de um alargamento da própria noção de memória. Ela oscilaria sempre entre esses dois pólos, implicando não apenas o surgimento e a permanência da lembrança, mas também, fundamentalmente, uma espécie de discordância e resistência inerente à memória. Isso nos permite deslocar a ênfase comumente dada, no que diz respeito à memória, àquilo que é lembrado, para falar dela como campo de surgimento do sujeito.

Mais do que aquele que detém a capacidade de recordar, o sujeito seria aquele que se perfila entre lembranças e esquecimentos ativos, no agenciamento operante entre eles. Tentarei relacionar tal trabalho historicizante à noção de gesto, salientando nesta o modo de comparecimento do sujeito com e para o outro. Se a reminiscência é aquilo de que sofrem as histéricas, como diz Freud no início de sua prática terapêutica, a lembrança é algo que pode se endereçar ao outro, como indica seu uso no sentido de presente ofertado a alguém, ou de souvenir de alguma viagem.

Quero falar, assim, da memória como gesto histórico e político – e eventualmente artístico. Para tentar apreendê-lo, travarei um diálogo com um trabalho do artista brasileiro Marcos Bonisson.

A memória como recorte

As imagens utilizadas por Bonisson em sua série Polagens vêm do diário pessoal em polaroide que ele mantém desde a década de 1980. As polaroides são como um registro intermitente, em fluxo, de sua relação com o mundo. Não se trata bem de um arquivamento de vivências em imagens, mas daquilo que o artista nomeia, seguindo o termo caro a Hélio Oiticica, como “repertório”: inventário de vivências, coleção de momentos vividos. Mas o repertório diz respeito principalmente a diferenças, contrapontos entre imagens e vivências, em um aglomerado de mundo sempre in progress. As polaroides mostram coisas variadas: infiltrações em paredes de locais diversos, bicicletas, corpos, pátios parisienses ou personagens no arpoador, cores e formas. Desde 2001, Bonisson busca mixar tais diferenças em colagens – ou melhor, como ele expressa em um jogo de palavras: em Polagens – que são “trabalho de pintura” e “combinação de cores”, em pura “swingagem”1.

As Polagens misturam tempos e espaços distintos e combinam-se em puro swing de ritmo, cor e textura. Elas ressoam cortes e alternâncias, em um jogo geométrico que mantém uma tensão entre o figurativo e o abstrato e subverte a fotografia como registro de um momento e suporte da rememoração. Em vez de atuarem como registro de uma cena ou vivência, as fotografias são recortadas e misturadas com outras fotografias de lugares e tempos diferentes, tornando-se por vezes irreconhecíveis. O próprio artista muitas vezes ignora o que está retratado em algumas das polaroides. Na mistura que se apresenta em cada Polagem, somos convidados, no entanto, a reconhecer imagens – e quase a nos lembrar delas, apesar de não as termos anteriormente vivido. Seguindo a dinâmica entre figura e fundo tradicionalmente explorada pela Gestalt, tais imagens-recordações apresentam-se subitamente e transformam a percepção inicial de cada Polagem.

O fato de não ser possível, mesmo para Bonisson, recuperar do que se trata em algumas imagens não tem a menor importância, justamente porque não se trata do arquivamento de lembranças em imagens, mas sim de ativar, na imagem, uma centelha de memória involuntária. Trata-se de fazer da imagem uma memória viva, em vez de um registro morto de um momento passado – e de fazer dela uma memória “coletiva”, no sentido em que ela não é propriedade de quem a viveu no passado, mas de saída se endereça a um outro e depende do reconhecimento deste. Se as lembranças são individuais, a memória talvez deva ser dita transindividual, na medida em que ela não se define por registros imutáveis de cenas, mas sim pela combinatória entre diferentes traços de recordação. Ela não é um conjunto de lembranças, mas sim jogo entre elementos discretos e diferentes uns dos outros – e nesse sentido ela funciona como a linguagem, segundo o próprio Bonisson. Antes de constituírem “frases”, narrativas capazes de organizar um passado, as recordações talvez sejam fragmentárias, sujeitas a combinações e capazes de pulsar, chamando-nos à sua presença (Pulsar foi, justamente, o título escolhido para a exposição deste trabalho no Museu de Arte Moderna do Rio em 2012).

Cada polagem embaralha o tempo cronológico de modo a amalgamar diferentes momentos em uma só imagem (Agora, antes e depois chegou a ser cogitado pelo artista como um título possível). Além de cada uma dessas imagens inventadas pulsar, em seu jogo interno, a série de Polagens apresentada em sequência faz com que algo pulse entre elas, uma após a outra, e o olhar de cada espectador combina-as entre si de modo singular. Elas repetem e contrapõem elementos entre si, fazendo surgir um ritmo que reverbera no corpo e transmite memória.

Encobrimentos e pulsações

Há duas figuras fundamentais da memória em Freud. A primeira delas surge no início de sua obra e chama-se “lembrança encobridora”. (FREUD, 1986/1899) Trata-se de uma cena que pode apresentar intensa vivacidade sensorial, apesar de não corresponder exatamente a fatos vividos. Com ela, o psicanalista ataca a crença no substrato perceptivo como registro direto da vivência e garantia de sua autenticidade. Em vez de elemento primário ao qual viria se acrescentar uma narrativa, a revivescência perceptiva aparece como resultado de uma narração (a que o psicanalista dará o nome de “fantasia”). Assim, nossas lembranças infantis mais nítidas revelam-se amiúde uma construção ficcional. Isso não retira delas, porém, um valor de verdade sobre o sujeito – pelo contrário, elas são para o psicanalista uma espécie de fotografia do infantil, pois transmitiriam algo fundamental à história do sujeito.

O que tal lembrança ficcional encobre é um acontecimento de que o sujeito não pode se lembrar diretamente: o trauma. Trata-se de algo radicalmente marcante na vida deste sujeito, pois coloca em questão sua própria existência (psíquica, e por vezes também física), por um excesso de excitações para o qual ele não estava preparado. O trauma só se inscreve na memória como em falso, como traço que não se apresenta como tal em rememorações, mas fornece uma espécie de fulcro em torno do qual se escrevem e organizam os elementos mnemônicos.

O que persiste na memória, o traço, a marca mnêmica, é incompatível com a consciência, segundo Freud. É impossível viver conscientemente aquilo que realmente marca – e tal é a razão mais fundamental que leva Freud à noção de inconsciente. Como diz Benjamin lendo Proust, só pode chegar a ser parte integrante da memória involuntária aquilo “que não tenha sido vivido expressa e conscientemente”. (BENJAMIN, 2000/1940, p. 41-42) Algo aconteceu e isso é fundamental, sem no entanto ter chegado a ser uma experiência – isso poderia ser tomado como uma boa definição do inconsciente, explicitando seu íntimo imbricamento à questão da memória.

Com muita frequência, as lembranças encobridoras não consistem em cenas integralmente ficcionais, mas em uma trama singular estabelecida com elementos de fatos vividos. Elas se parecem, então, com as polagens de Marcos Bonisson: entrelaçando elementos mnêmicos discreto‑s oriundos de espaços e tempos diversos, a memória constrói cenas mais ou menos unificadas, mas que, se bem examinadas, revelam intervalos, cortes, interrupções entre as quais pulsa a força do trauma. Sob a trama por vezes bem cerrada da lembrança, a memória revela-se, portanto, perigosa, como assinala Benjamin em um de seus trechos mais conhecidos: articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo. (BENJAMIN, 1994/1940, p. 224)

O trabalho da memória é aquele assinalado por Benjamim como sendo o do historiador: trata--se de se apropriar de algo perigoso, que clama por se repetir com violência. Da repetição mortífera do trauma o sujeito deve poder vir se assujeitar, de modo a afirmar-se como sujeito da experiência, pelo trabalho da memória. Apropriar-se da reminiscência correlaciona-se, assim, com amortecer os choques, com ligar os estímulos excessivos em uma trama fantasística. E tal trabalho de história talvez se dê, como ensinam as polagens, em pequenos gestos, cortes e rearranjos capazes de modificar a lembrança, forjando nela um lugar do sujeito. Tais gestos mnêmicos transformam a lembrança, por pouco que seja, desde que o presente se reconheça visado pelo passado – e possa, portanto, com ele se modificar um tanto. Walter Benjamin, que era um extraordinário leitor de Freud, percebe que o trabalho sobre o trauma, na repetição, é uma tarefa temporal. O trauma se deu fora de tempo – ele veio sem que houvesse o tempo preparatório da angústia, e nos pegou de surpresa. A memória vem nos dar “o tempo para organizar a recepção do estímulo, ‘tempo que incialmente nos faltou’”, como diz Benjamin citando Paul Valéry. (BENJAMIN, 2000/1940, p. 43) A função da defesa diante dos “choques” (que renomeiam nos escritos do filósofo o trauma freudiano) seria aquela de atribuir ao acontecimento “um lugar temporal” preciso na consciência, e isso se dá em detrimento “da integridade de seu conteúdo”. (BENJAMIN, 2000/1940, p. 44) Um lugar temporal: a curiosa formulação do filósofo parece nomear justamente aquilo de que falávamos com as polagens, que combinam tempos diferentes em uma mesma “cena” híbrida. Para poder operar tal atribuição de um lugar temporal, seria necessário romper a integridade do acontecimento: cortá-lo, recortá-lo e fazer dele fragmentos diversos, para depois rearranjá-lo como em uma lembrança encobridora. Essa operação consistiria na mais alta realização da reflexão, e equivaleria a converter “o acontecimento em uma experiência vivida”. (BENJAMIN, 2000/1940, p. 44) Recordar é viver, como diz o célebre adágio. Mas essa vida, essa vivacidade da memória implica não tanto o surgimento direto de elementos perceptivos, mas sim gestos diversos de quebra e rearranjo das lembranças.

Freud retomará a questão da memória em 1925 com o modelo do bloco mágico, brinquedo até hoje existente, que consiste em uma superfície com várias camadas internas, na qual se pode escrever e apagar à vontade, usando um instrumento pontiagudo sem tinta. (FREUD, 1986/1925) A pressão deste instrumento faz com que zonas das camadas superiores do aparelho fiquem em contato com sua camada interna, feita de cera ou material moldável, formando linhas visíveis. Graças ao acionamento de um dispositivo que elimina o contato entre as camadas, a superfície pode tornar-se novamente neutra e pronta para receber novas inscrições. O psicanalista ressalta no bloco mágico o fato de que, mesmo após seu “apagamento”, todas as inscrições permanecem marcadas na camada de cera, ainda que não sejam mais visíveis na superfície. O bloco seria realmente mágico se tais marcas mnêmicas escondidas pudessem às vezes ressurgir por elas mesmas, como acontece em nosso aparelho psíquico. Nessa concepção de memória, trata-se, assim, de palimpsesto, da aparição de inscrições antigas em uma mistura de tempos e espaços e de acordo com um ritmo variável, um batimento imprevisível entre diferentes camadas.

A memória é, nesse modelo, concebida como uma escrita que põe em jogo não exatamente imagens e narrativas, mas sim traços mnêmicos que poderiam dar origem tanto a imagens quanto a palavras. Como escrita, ela parece pressupor um agente desta ação – uma mão que viria de fora do bloco mágico para nele inscrever algo. Antes de compreender, apressadamente, que o sujeito seria o senhor dessa escrita, é importante assinalar que ele não pode ser localizado “fora” do bloco – não se trata neste dispositivo de um instrumento à mercê do sujeito, mas sim de pensar a memória como o próprio aparelho psíquico. O sujeito não pode, portanto, ser tomado como senhor da escrita – ele não é mais do que aquilo que se conforma, de maneira efêmera, entre esses traços, seus cortes e intervalos. Ele corresponderia mais à pulsação de inscrições, ao arranjo temporal entre elas, do que à mão que as teria originalmente efetuado. Os traços vêm de fora – como mostra o trauma – e entre eles o sujeito poderá surgir, ao fazê-los seus, no arranjo pulsante da memória.

Em uma “geometria do acaso” (para usar uma expressão de Marcos Bonisson), as polagens nos ajudam a conceber um gesto mnêmico capaz de configurar um espaço temporal que, em um dado instante, pode dar lugar ao sujeito. Esse gesto é aquele pelo qual o presente se volta para o passado e se reconhece visado por ele – ou deixa que ele se dissipe, veloz. Tal gesto tem algo de irredutivelmente corporal, como mostra a manipulação de fotos por Bonisson. As polaroides são, para ele, películas, corpos que se trata de “estripar”, delicadamente, em uma operação quase cirúrgica. Falando do que chama “ato analítico”, Jacques Lacan menciona uma “página que só pode ser virada por um gesto que modifique o sujeito”. (LACAN, 2003/1969, p. 374) O gesto é uma pequena modificação do sujeito – e da história. A tarefa histórica da memória é aquela de implicar o sujeito (sua história, sua memória, seu corpo) em um
gesto transformador – para em seguida convidar outros a realizarem-no, de novo, por sua vez.

Gesto

Tal gesto histórico é também poético. O leitor já terá percebido que ele não pode ser confundido com a ideia de uma expressão do eu – ele é precisamente o contrário disso. Trata-se de gestos que não são de saída do eu, mas vêm do outro – gestos como aqueles do ator. Como diz Brecht citado por Benjamin, a mais alta realização do ator seria “tornar os gestos citáveis”. (BRECHT citado por BENJAMIN, 1994/1931, p. 88) O jogo, a representação do ator consistiria em citar, em cena, seus próprios gestos – e assim torná-los citáveis por outras pessoas, por qualquer um. Ele precisa, então, “espaçar os gestos, como o tipógrafo espaça as palavras”. (BENJAMIN, 1994/1931, p. 88) Recortando a fluidez de seus movimentos, acentuando o instante de cada um deles, o ator transformaria sua ação em gesto.

Diferente da ação, que visa algo, o gesto tem algo de gratuito ou excessivo. Além disso, ele se endereça ao outro: é feito para ser visto ou ouvido. É de uma certa distância em relação a si mesmo que se trata, na concepção de gesto, e de tal distância a posição do ator fornece um bom exemplo, na medida em que ele se oferece explicitamente ao olhar do outro, além de jamais coincidir inteiramente com o papel que representa.

O teatro épico de Brecht, ainda segundo Benjamin, tem como um de seus fundamentos que “quem mostra” algo deve também ser “mostrado”. (BENJAMIN, 1994/1931, p. 88) Há uma relação dialética entre o que se representa em cena e a representação da própria condição de representação. O gesto tem a ver com isso: por ele, nele, a representação se afirma como representação, quebrando ou nuanceando a ilusão mimética. Mostrar-se no mundo, assim como no teatro ou na arte, de maneira a sublinhar sua presença: gesto político. Conformar-se, na memória, de maneira endereçada ao outro: gesto do sujeito histórico.

A peça pode começar, e é, de fato, um som de sino que a anuncia. Este som se produz da forma mais natural tão logo Wese deixa a casa onde está seu escritório. Porém, diz-se expressamente que essa campainha é “sonora demais para ser a campainha de uma porta, soa sobre toda a cidade, eleva-se até o céu”. (BENJAMIN, 2000/1934, p. 425)

Benjamin traz essa imagem de amplificação do som do pequeno sino tomando todo o espaço como modelo de gesto dos personagens de Kafka. O escritor renuncia, segundo o filósofo, a adaptar os gestos de seus personagens às situações comuns, deixando-os sem explicação. Por serem inadaptados, destacando-se do ordinário, esses gestos seriam capazes de ganhar o mundo, amplificando-se e transformando poeticamente seu contexto.

Podemos chamar disseminação essa potência do gesto em contaminar os elementos do mundo e fazer com que os objetos possam alojar memória – como a madeleine de Proust. É por um gesto estético – e político – que o sujeito se dissemina de maneira a habitar os elementos do mundo, explorando aquela capacidade pela qual nosso passado mais íntimo – nosso desejo – pode estar alojado, em germe, em alguma coisa.

Notas
1 Como afirmou o artista em conversa realizada em 2012.

Referências
BENJAMIN, Walter. Sobre o Conceito da História (1940). Obras Escolhidas. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BENJAMIM, Walter. Sobre Alguns Temas de Baudelaire (1940). A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
BENJAMIN, Walter. Franz Kafka (1934). A Modernidade e os Modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2000.
FREUD, Sigmund. Lembranças Encobridoras (1899). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1986, vol. III.
FREUD, Sigmund. Repetir, Recordar, Elaborar (1914). Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1986, vol. XII.
FREUD, Sigmund. Uma Nota sobre o ‘Bloco Mágico’ (1925) Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1986, vol. XIX.
LACAN, Jacques. O Ato Psicanalítico (1969). Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

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