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UMA GEOGRAFIA DO CORPO. UMA GEOMETRIA DA ÁGUA
Author: Paulo Herkenhoff (2016)

Essa conversa foi realizada em setembro de 2016, numa manhã chuvosa, na praia de Ipanema, acompanhada pela editora Ana Cecilia Impellizieri Martins e pelo fotógrafo e curador Milton Guran, que convidaram o crítico Paulo Herkenhoff para conversar com Marcos Bonisson sobre as fotos que comporiam este livro. O método de pensar de Herkenhoff fez do encontro mais um diálogo que uma entrevista do artista ao crítico.

Paulo Herkenhoff: Sua obra fotográfica é geografia. Por décadas, sua câmera deambula pela praia de Ipanema, mais especificamente, seu foco é, em seu extremo, o Arpoador de areia, sol, pedra e mar. Para apresentar este lugar é necessário o corpo. Por aquela areia caminharam a Garota de Ipanema [Helô Pinheiro], do que resultou a música de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, ou o bando da pornopoesia de Eduardo Kac. Nas dunas de Ipanema, espreguiçou-se a música, Gal Costa, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, jovens que fumavam maconha dentro do mar. Naquelas águas, aportaram centenas de latas com maconha, lançadas ao mar por um barco de contrabando. Foi o “verão da lata” [1987]. Quando vejo suas imagens, compreendo que estar ali produtivamente requereu uma intimidade carnal com esse lugar. E é isso que nelas se vê: você empresta seu corpo à paisagem. Você mergulha com a câmera; você risca o território de areia como um ato linguístico definitivo e provisório a cada onda; você lida com o mar como um meta-tempo em diálogo com o tempo da fotografia. A natureza invade o aparato ótico. Você está simbolicamente presente nessas imagens. Acho que seu imaginário se entrega ao lugar Arpoador e a essa cidade que demanda corpos para ser interpretada. Por vezes, me parece que você não faz tanto registros de corpos, são mais captura do lugar pelo corpo. É a hora em que a película fotográfica é pele do artista e a fotografia é experiência sensorial com a intimidade do corpo.

Marcos Bonisson: Sim, empresto meu corpo a esse lugar desde os meus 10 anos. Eu nasci no bairro de Botafogo e aos 10 anos, me lembro perfeitamente, minha mãe e meu pai consentiram que eu pegasse a minha prancha de surfe e viesse ao Arpoador de ônibus. Isso foi uma conquista. Naquele verão, não sei em que época dos anos 1960, eu vim ao Arpoador sozinho. E esse lugar, de algum modo, não vou dizer que foi uma epifania porque foi muito mais do que isso, fendou a minha visão, não a de um menino que não estivesse acostumado com o mar, porque eu fui criado à beira-mar no Leme, Copacabana, mas o Arpoador tinha alguma coisa especial e eu acho que essa visão não apenas com meu corpo no lugar, mas com os outros corpos, começa a tomar forma nesse momento. O Arpoador é um lugar singular, porque não é Ipanema. Para mim, Arpoador é como se fosse um adjetivo substantivado.

PH: Lá você não tem a cidade, desde que o olhar se posicione no lugar certo. Há um ponto na pedra do Arpoador do qual não se vê nenhuma construção humana. Só mar. Talvez alguma baleia...

MB: É verdade. Já levei muito amigo estrangeiro para “não ver” o Rio. É um lugar em que você vai ver o Rio no Cosmos, que é o sol, o mar, o horizonte... Então isso é a conexão do Rio de Janeiro com algo maior, pois o Arpoador é um lugar onde a cidade se oculta para revelar o seu mar. Há um ponto onde você só vê água. Essa visão não ocorre numa área grande da pedra, mas ela existe.

PH: Essa é uma metáfora de sua fotografia. Você não fotografa o óbvio turístico da beleza ou o óbvio sociológico de um dia de praia cheia. O que está mais evidente, portanto, é um ponto de vista construído como uma invenção do olhar. Em suas imagens, tudo parece que sempre esteve ali a sua espera para se tornar visível, do mais oculto, do mais complexo ao mais simples, tudo esperava seu corpo e sua intimidade do olhar. Trata-se de um ponto de vista que é mais que foco e geometria, para ser afetividade do olhar. Seu Arpoador é amoroso.

MB: Acredito que sim, pois é uma vivência muito pessoal. Havia um determinado momento, antes do livro Arpoador [2011] ser publicado, que eu comecei a sentir uma necessidade incomensurável de descentrar o ponto de vista. Obviamente, fotografar do alto era mais complicado. Não tinha drones naquela época. Desse modo, a pulsão fundamental foi mergulhar e começar a olhar as coisas de dentro do mar. Não necessariamente olhar embaixo d’água, mas vislumbrar o mundo entre. Então, muito do que se vê no mar, dentro do mar no livro Arpoador por exemplo, é esse entre...

PH: É um lugar inconcluso, ou melhor, trata-se de trabalhar a ontologia da inconclusão. Sua fotografia já se construía como na música de Lulu Santos, “como uma onda no mar”, um hit de nossos tempos de juventude. Seu Arpoador nos diz, como Heráclito, que tudo está em transformação. É a clareza do mar que você experimenta cotidianamente, como transitoriedade e energia física que movem a massa d’água, que inscreve em alguns trabalhos. Inconcluso e transitório como suas características mais estáveis.

MB: Inconcluso como o meu trabalho. Esse espaço e tempo inconclusos que são fundamentais para mim. Eu posso pensar objetivamente que essa pedra do Arpoador que a gente vê estruturada existe há 650 milhões de anos e eu a fotografo hoje. Mas ela remonta à Pangeia – Gondwana, um super continente hipotético.

PH: O que vejo na reunião de seu trabalho nesse livro é um desdobramento lógico de ideias imagéticas, das construções, dos fenômenos. Por isso diria que esse é um projeto fenomenológico. Você tem uma fenomenologia de Ipanema. Certos cortes me lembram síncopes musicais. Certos grupos de fotografias ou construções internas em determinadas imagens parecem desenvolvimentos melódicos. Em sua obra, há uma delicadeza rítmica, uma batida da bossa nova, da Garota de Ipanema. Eu acho que as coisas também desembocam numa questão muito simples que seria: haveria um inconsciente geográfico aqui?

MB: Talvez. Tupinambá até.

PH: Sua fotografia tem algo de uma “engenharia poética” como a própria cidade do Rio de Janeiro hoje. Ela é formada por uma natureza estonteante, mas houve uma ação humana de engenharia que transformou a geografia em poética, com o Aterro do Flamengo, o Outeiro da Glória, os túneis, toda a orla aberta e trabalhada, as calçadas de Burle-Marx, a Lagoa. Sua fotografia não documenta isso, mas contribui com uma poética própria para falar da relação entre cultura e natureza. Mesmo que a sua fotografia provoque por vezes um desaparecimento da geografia ela é, ao mesmo tempo, a mesma geografia. Nesse sentido, acho que uma pergunta se coloca: a sua fotografia poderia ser feita em outro lugar? Poderia ser em outro lugar que não Ipanema, Arpoador?

MB: Sim. Poderia dizer que é como o sertão, o Arpoador para mim é de ordem endógena, necessariamente ele não é exógeno. O Arpoador criou em mim uma maneira de olhar, é verdade. Mas é verdade também que o que nós temos aqui é basicamente o Arpoador. Esse Arpoador que, sobretudo, anda comigo. Então, eu posso ir ao MAC [Museu de Arte Contemporânea, em Niterói] e ver o mar, eu posso ver uma água belíssima na Chapada Diamantina, ver algo que me remete a essa ideia de uma experiência, de uma vivência em um ponto específico do mundo. Mas eu diria mesmo que é no Rio de Janeiro, nesse ponto especificamente, que está fincado esse trabalho.

PH: Acho que você lida com uma inesgotável arqueologia que não está sob a terra, mas está em seu olhar. A arqueologia está dentro de você. Por isso talvez a noção de um consciente geográfico pudesse lhe acompanhar. Não para falarmos que a aldeia é universal, aquele velho argumento. Mas que este relevo cultural do mundo está dentro do sujeito, que se elabora por ele. Você não é um documentalista do Arpoador, mas seu poeta visual; por isso, é seu inventor. O que está incorporado ao sujeito para além da Garota de Ipanema? Do píer? Do Verão da lata? O que estaria incorporado seria um fenômeno? A palavra fenômeno aqui, nesse momento, é a grande síntese porque a sua postura fenomenológica é aquela de quem se coloca aberto e disponível para um lugar no mundo, para um fenômeno do mundo, para um relevo da geografia humana da qual você faz parte.

MB: Perfeito.

PH: Então, esse livro apresenta seu olhar fenomenológico. Quando você diz que é inacabado, não é inacabado porque tem muito a fazer, é inacabado porque é um estado semântico de impermanência como o mar. É um estado de trânsito que o espectador pode suscitar e incorporar ao significado. Não há uma forma que se defina, que se enrijeça. E nisso, eu acho que o conjunto, a lógica, a dinâmica, as pulsões e a impulsão – tanto a de mergulhar com aparelho ótico quanto a de você nadar nesse mar de imagens através do livro –, que porta uma fluidez, me faz vê-lo como um livro feminino.

MB: Acho linda a ideia de um livro feminino.

PH: Não é a descrição física, um diagnóstico do lugar, é a incorporação de corpos delicadamente, como partes integrantes deste mundo que é uma geografia humana, também. Por isso, há pouco, você pode falar do sertão que é o território sociológico e simbólico, o Brasil profundo, de Euclides da Cunha ao Cinema Novo. Você une mar e seca, num país onde o mito diz que um dia o sertão vai virar mar. Pensando a partir do historiador Fernand Braudel, o Arpoador é seu Mediterrâneo e sua micro-geografia poética com sua dimensão humana, que se estende do corpo ao mar.

MB: Essa geografia do corpo aparece depois que volto de uma temporada de 10 anos em Nova York, em fins da década de 1980, e começo a frequentar o Arpoador como mergulhador, nadador, andador, e inicio a série “Balada do corpo solar”. Essa série vai indicar outras diversas experiências não somente com o corpo, mas com um outro corpo possível; não necessariamente carne e sangue, mas onde a topologia, as diferentes percepções do Arpoador e suas formas são colocadas em jogo. A ideia do zigue-zague, por exemplo, que nasce em 2001 com essas sete partes de bambu e as linhas que eu coloco sempre perpendicularmente ao horizonte. Enfim, uma série de coisas vão surgir aí. Mas assim, essencialmente, eu acho que o corpo está sempre lá. Um corpo substanciado, certamente. O todo pela parte. Uma metonímia que aparece mais especificamente aonde surge não apenas o que está incluso, mas também o que está excluso.

PH: Sim. Há a presença do que está fora da paisagem e há também uma interferência na paisagem... uma fotografia analítica da paisagem através da geometria da água que alude a um pensamento matemático e ao informe do mar.

MB: De fato, há experiências que dão início a novas apreensões. O relógio de sol desenhado com bambu na areia, por exemplo, deslancha toda a série do Desenho de Praia. Ou seja, há essa dinâmica, sejam nos desenhos reais feitos com bambu ao caminhar na praia ou mesmo algumas imagens onde há uma geometria desenhada digitalmente depois. As das linhas que marcam uma nova presença na paisagem...

PH: Algumas de suas fotografias lembram, nos tempos coloniais, o jesuíta Anchieta que escrevia poemas à Virgem nas areias das praias... Talvez, de algum modo, vejo a sua fotografia buscando lidar com o campo do indizível.

MB: Sabe, quando você fala sobre indizível, lembro de dois filmes que fiz sobre o período nova iorquino do Hélio [Oiticica]. E em um desses o Helio cita num audio tape, num “Heliotape”, uma coisa que eu usei em um dos meus filmes, algo do Artaud que é absolutamente fabuloso. Ele diz o seguinte: “Let the lost get lost”. Ou seja, deixe o perdido ficar perdido. E quando você falou sobre o indizível me veio a imagem acústica dessa fala do Artaud, via Hélio. Eu não sei muito como traduzir essa fala para essa conversa, mas de algum modo eu a conectei com essa questão do indizível e do desafio indizível.

PH: Oiticica, apesar de seu caráter dionisíaco, tinha momentos de silêncio, reflexão e até de certa melancolia. Você traz a imagem para um silêncio, para um limite do dizível, como quando coloca as pedras para o centro da imagem. Algumas de suas imagens me pedem observação silenciosa sobre o mundo como foi para mim, quando cheguei ao Rio, ir à pedra do Arpoador numa tarde tranquila de outono.

MB: É a pedra de onde se arpoavam as baleias...

PH: Acho que também aí pode haver uma conexão dessa geografia com o que Villém Flusser fala do fotógrafo como caçador. Eu nem sei se é uma passagem do filósofo da qual eu goste muito, mas ele compara a imagem fotográfica ao objeto psíquico, à caça. Portanto o Arpoador é um lugar onde você busca o alvo simbólico.

MB: Objeto do desejo. Que é sempre faltoso.

PH: A todo momento havia a relação da água com a liberdade, com a expansão do olhar e seu foco. A água em sua obra é um mar pacífico. Seu universo não se compõe de imagens hegemônicas nem turísticas. E de repente, na série de imagens de 1978, se vê oposto, que é a situação de uma bolha, de um fechamento, de um sufocamento onde a água corresponde a essa dificuldade de respirar que é a umidade. É um Arpoador heterotópico.

MB: E a alteridade do corpo... Esta é uma série sem título. Eu era muito jovem quando realizei esse trabalho, então eu não parti, certamente, de um conceito, eu parti de uma visada. O que é que tem aí? Uma tela de mylar em cima da piscina do Parque Lage – onde eu estudava gravura, desenho, escultura em metal e fotografia –, em que o Rubens Gerchman usava para projetar filmes 16 mm, filmes de artes e que nós assistíamos do outro lado. Um belo dia estou na escola, sentado à beira da piscina e vejo alguém que passa e gera uma imagem translúcida, e pensei: “que bonito isso! Vou fazer umas fotos dessa coisa”. E começa assim, com essas mãos em contato com a tela. Tudo seco. E depois eu descobri que ao molhar o corpo, criávamos desenhos. E assim nasceu essa série, que acabou participando da primeira e única Trienal de Fotografia do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1980.

PH: O sol é um personagem de Ipanema. No verão, é a esfera ígnea que mergulha vertiginosa no mar. É a hora em Ipanema em que a multidão aplaude o sol. Sol e luz, Ipanema e fotografia. Se fotografia é escrita da luz, a sua é escritura da luz solar. Em sua obra, há um outro momento em que as imagens saem da água para o fogo, através do que você um dia pensou como o “corpo solar”.

MB: Sim. Trata-se de um still do meu filme chamado Burning Pictures [5’13”, 2007]. São fotos nas quais eu toquei fogo e filmei essa ação, eu colocando fogo nas fotografias e elas queimando. São fotos feitas aqui no Arpoador, em 2005, quando eu estava cansado das fotos, da série sobre a praia, não conseguia fazer o livro sobre o Arpoador... E então comecei a queimar tudo. Mas vi que tinha uma coisa bonita e comecei a filmar. Assim, mesmo no desaparecimento, o Arpoador permanece.

 

Paulo Herkenhoff é curador e crítico de arte. Foi diretor cultural do Museu de Arte do Rio – MAR (2013-2016), diretor do Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro - MnBA (2003-2006), curador adjunto no departamento de pintura e escultura do Museu de Arte Moderna de Nova York – MoMA (1999-2002), consultor da IX Documenta de Kassel, na Alemanha (1991) e curador chefe do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – MAM-Rio (1985-1999).

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